Somos a primeira pessoa do plural (José Luís Peixoto)

“Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.
 
Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção. 
 
Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.
 
Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.
 
Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.
 
Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.”
 
José Luís Peixoto, in revista Visão (Dezembro 2011)
 
Obrigada João Nuno (http://joaonunomb.spaceblog.com.br/) pela partilha, pelo texto lindíssimo que me enviou e que aqui deixo, para que outros possam ler também.
José Luís Peixoto é um autor de que gosto muito… que me toca… e cuja sensibilidade respeito porfundamente.
…obrigada redobrado!… já que o tempo para escrever não corresponde à necessidade e vontade imensas de o fazer…  e que vão crescendo a cada dia que passa!
Saudades para todos!!!
Isabel

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15 respostas a Somos a primeira pessoa do plural (José Luís Peixoto)

  1. Emília Pinto diz:

    Um texto impressionante, fantástico que faz um retrato fiel de todos nós. Como estamos tão ausentes da vida dos outros, outros esses sem os quais não podemos viver.!!! Não queremos saber se ouvimos um grito no andar de cima, se vemos um idoso com dificuldade em atravessar a rua, em subir uma escada. Se os ajudarmos podemos ser classificados de ” caretas”; isso já não se usa; faz-me impressão entrar num metro, num autocarro e ver gente jovem sentada e um idoso de pé, às vezes de bengala, e essa pessoa mais jovem não lhe dá o lugar. Isto é a tal da normose, considerada a peste do sec.XXI; habituamo-nos de tal maneira a ver esse estado de coisas que já nem nos chocam; são normais; o contrário é agora considerado anormal. Se vemos uma pessoa a ter uma atitude correta com o seu semelhante achamos que é um anormal, um ” careta., como dizem os brasileiros. Sabe, Isabel a resposta está no seu post anterior, nos videos de Robert Happé: ” a consciência é a resposta”. Enquanto não houver uma mudança nas nossas consciências, enquanto não pusermos o amor à frente de tudo, enquanto continuarmos a correr atrás do vil metal, o mundo não mudará. Tudo deve ser pensado e feito tendo como principal objetivo a pessoa; quando assim pensarmos veremos que tudo o resto virá por acréscimo. Muito obrigada, Isabel pela partilha de tão belo texto. Como já lhe disse em resposta ao seu comentário, publiquei há 2 semanas um dos videos que enumerei acima; foi muito apreciado. Obrigada pelo carinho e fique bem, amiga. Seja Feliz. Um beijinho
    Emília

  2. 🙂 Olá, Isabel! Assim consigo entrar sem qualquer dificuldade.
    Tenho gostado muito de tudo o que já pude ler do José Luís Peixoto. Neste momento tenho comigo o CAL que, acredite ou não, não consegui ainda ler… quando leio qualquer coisa mais “substancial” do que um simples post ou uma das minhas revistinhas nocturnas do Chico Bento, “leio absolutamente”, sem limites de tempo, sem horas para terminar este ou aquele parágrafo, voltando atrás e relendo tudo o que me parecer necessário. Sempre fui assim e agora, com esta indisposição toda – veio-me uma infecção urinária oportunista… – , com os meus dois velhotes doentes – o Kico e o Beethoven – e com os esforços que vou fazendo para me manter razoavelmente a par da situação político-social que atravessamos, não me sobra tempo nenhum senão o pedacinho que reservo para tomar café com as tais “vizinhas amigas” e falar – ou ouvir falar – um bocadinho.
    Quando se faz tudo e mais alguma coisa com a lentidão com que eu o faço, o tempo não rende nada e exasperarmo-nos só serve para nos acrescentar uma boa dose de mau humor ao desconforto geral…
    Mas li este texto que fez o favor de publicar 🙂 Muito obrigada e um enorme abraço para si!
    PS – Como não me sinto nada bem e não estou muito segura de conseguir enviar os meus votos de um feliz Natal a todos os amigos, aproveito para lhos deixar aqui… pedindo desculpa por ser tão excessivamente informal. FELIZ NATAL!!! 🙂

  3. Emília Pinto diz:

    FELIZ NATAL; ISABEL Seja feliz agora e sempre. Beijinhos
    Emília

  4. Querida amiga

    Hoje minha visita é para agradecer
    o presente que é para mim
    a sua amizade,
    e também desejar
    um maravilhoso Natal,
    onde possas encontrar nestes dias
    ainda mais inspiração
    para a alegria de ser feliz,
    e para o milagre de fazer
    quem passa por tua vida feliz.

    Que o teu olhar seja a mais perfeita
    luz do Natal a enfeitar o mundo.

  5. Olá Isabel.

    Tenho ideia que já cá estive,mas perdi-a por estes caminhos tortuosos da Blogosfera, mesmo sendo vizinhas pois vivemos na mesma plataforma.
    Admito, com alguma vergonha que não conhecia o autor deste texto fantástico e tão verdadeiro.
    Vi-me retratada, despida, como certamente a maioria de nós, pois somos a imagem real das suas palavras, infelizmente.

    Teoricamente sabemos e a cosnsciência chamo-nos muitas vezes á razão, especialmente como diz o autor, quando passamos por situações onde a morte nos prega um susto, ou alguém que para nós será sempre imortal se vai, tudo muda, mas logo esquecemos nas atitudes, nas palavras, em tudo.

    Oxalá estes textos cheguem com mais frequência a a msi pessoas, ralvez as consciências saiam mais alertadas.

    Deixo-lhe votos de Feliz Natal num poema extenso, mas belo.

    “Sou uma árvore de Natal diferente

    Um dia senti,
    Que a terra ardia.
    Pensei, ser eu
    Que estava febril,
    Delirante,
    Ou tinha mesmo acordado
    Atordoada,
    De uma noite mal dormida.
    O tempo era de Verão,
    O vento que soprava
    E a gente que passava.
    Grande era o alarido
    Que num instante
    Virou clamor e fundiu o espanto
    Em pranto de dor.
    Não estava febril, afinal,
    Nem mesmo mal acordada.
    Tudo ardia em meu redor
    Ao som de gemidos e estalidos
    Em tom de sinfonia gritada,
    E logo em cinzas eu via
    A minha terra,
    A minha gente,
    O meu adro
    E o meu terreiro…
    Holocausto em nome de nada.
    A dor foi passando
    Como a água do ribeiro
    Ao encontro da outra margem.
    Do meu chão,
    Erva verde, frágil e mansa
    Foi crescendo,
    Relembrando a cada instante
    A minha solidão,
    A negrura,
    Que em tom de amargura
    Se havia instalado
    Em todo o canto de mim.
    Sem ramos, nem folhas,
    Sem filhos, nem amigos
    Desistia da vida,
    Mesmo,
    Que o vento me açoitasse
    E as lágrimas teimassem
    Em saltar porta fora.
    O tempo foi passando
    Estirada naquele chão,
    Espreitava o dia acontecer,
    No desejo de me arrastar
    Para além do mar.

    Um dia,
    Um outro dia…
    O chão estremeceu.
    Do céu, uma fresta de luz
    Incandesceu,
    E não sei mesmo
    O que me aconteceu.
    Senti mãos,
    Escutei vozes,
    E fiz viagem até esta paragem.
    E aqui estou eu!
    Nesta sala iluminada,
    Neste sítio ajeitado no abraço,
    Neste canto todo feito de ternura.
    Continuo feia e queimada,
    Ressequida e enquistada,
    Não mo lembrem, …sei bem.
    Mesmo sem ramos, nem folhas,
    Mesmo tendo perdido o vigor
    E a robustez doutros tempos,
    Neste espaço tão mimado
    E com laços brancos enfeitada,
    Sinto-me noiva, amante
    Deste tempo de Natal.
    Saibam de mim!
    Escutem a voz do meu coração,
    Olhem bem em meu redor…
    E mesmo que a noite seja fria
    Não há maior alegria
    Do que aquela
    Que a minha alma canta.
    De braços queimados,
    E toda vestida de branco,
    Oh gente de Campos,
    Oh gente desta terra
    Bem-haja!
    Obrigada.

    Natal de 2011
    Poema de Maria José Areal”

    beijinhos

  6. Marta R diz:

    Isabel:
    Este texto é perfeito para esta quadra, é perfeito para ilustrar os votos e oconvite que te deixo:
    Sejamos os nossos votos amiga.
    Não dói 🙂
    Pela minha parte tentarei.
    Abraço nesta quadra
    Marta M

    • Obrigada Marta e perdão pela minha ausência… vamos continuar o Natal.
      Obrigada sempre, pelas visitas e pelas palavras que dizes e que nos ajudam a reflectir e a sentir a importância da companhia neste nosso caminho!… 🙂
      Um abraço apertado
      Bom ANO!!!
      Isabel

  7. “Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.”
    Que este Natal permita uma maior consciencialização para tudo o que nos une nesta imensidão de Amor que é a nossa essência e a nossa morada. Que estejamos verdadeiramente PRESENTES nos olhares, nos gestos, num só coração. Um Natal pleno de PRESENÇA minha amiga.
    Teresa
    Nota. Maravilhoso este texto. Tenho-o lido e relido pedindo sempre interiormente para não me esquecer destas palavras. Obrigada!

    • Adorei este texto Teresa. Fez-me tanto sentido.
      Obrigada por não desistires de vir aqui apesar da minha ausência neste lugar de que gosto tanto… ou tanto mais quanto tenho necessitado estar ausente!
      Que haja Natal Sempre… cheio desse AMOR que tanto nos é preciso. Um Amor cada vez mais universal, mais isento de interesses para além dessa vontade de dar…dar…dar… e agradecer tantas das dádivas que recebemos. Por vezes esquecemos o que temos mesmo à nossa frente. Não lhe damos o valor que merece. Obrigada minha amiga. OBRIGADA MESMO!!!
      Beijo grande
      Isabel

  8. Joana diz:

    Votos de Feliz Natal, Isabel. Tudo de bom e um beijinho.

    • Obrigada Joana… e acreditando que estou perdoada por esta distância no tempo, é hora de dar sentido á palavras de que NATAL é quando queremos!
      OBRIGADA do coração!!! Gosto muito que venhas aqui! Mesmo muito!!!
      Um abraço apertado e um bom espírito de Natal ao longo de todo o ano que também desejo que seja feliz.
      Sempre,
      Isabel

  9. Gianini diz:

    Simplesmente inspirador, parabéns.Espero que ao longo de 2012 o José Luiz continue a nos proporcionar textos que tamanha riqueza.

  10. João Nuno diz:

    Obrigado eu, querida Isabel, por tudo e tanto.
    Um abraço apertado.

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