Desceu as escadas no aparente e necessário vagar dos cegos….
Estacionada vi-a passar em linha recta tacteando o espaço do caminho, chocando devagar os carros, procurando o espaço entreaberto por onde passar…
Confesso que quase saí carro fora, quando a vi atravessar…
…mentalmente, linha recta…
De encontro aos contentores, contornou-os lateralmente, tacteando, tacteando sempre o espaço, e de novo, rectilineamente em frente.
Mais uma vez, contive o impulso visceral de sair do carro, auxílio imediatista que, ponderado, me pareceu vão….e mantive-me no assento, quieta, numa observação irresistível, atenta.
Linha recta depois da estrada e contentores, o ponto médio da parede do edifício central do largo.
Iria contorná-lo. Pela direita? Pela esquerda?
Optou pela direita…
….a contornar o edifício seguiria pela parte mais estreita do passeio, ao invés do espaço pedonal do largo, amplo e mais seguro….para um cego, claro….porque inconscientemente traçara-lhe um rumo, indefinido, mas um rumo para lá do edifício. O outro extremo do largo?
Tacteando a parede, prosseguiu na sua calma de percepção de tacto….e, contida no meu assento, perdi-a num simples virar de esquina.
Impressionada com a visão, da medida de cada passo necessária a um cego, cogitava a concentração a que a imagem me levara.
Todo o meu aceleramento do dia, parara… a acompanhar cada passo como se fora meu.
Tacteei com ela o caminho… quase consegui a atenção devida ao agora, tacteando…
…quase…porque enquanto via… expectava, pensava e divagava, para além da concentração necessária à direcção.
Perdida nestes rumores de pensamento, passou tempo sem tempo e só me reacendi acordada, quando voltei a vê-la de regresso, com uma criança pela mão.
Pequenina, enfrentava com naturalidade o caminho… lento, no tamanho dos seus passos e do necessário tacto da mãe que lhe permitia parar a cada degrau que precisasse, ou a cada curiosidade que o caminho lhe despertasse…próprio da criança, não cega, atenta ao mundo e ao que a cerca a cada momento de agora…e próprio da cega, atenta ao tacto, e à percepção do mundo que lhe julgamos vedado.
Isabel Maia Jácome